O abominável caso do Sr. Neves


Depois que falei da intragável sopa de letrinhas processuais que assola o País (leia aqui), ficou fácil entender por que razão o jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves ainda está solto, mesmo após sua confissão e condenação em três instâncias judiciárias.

Primeiramente, pontuo que um “réu confesso” não é pior que um réu “não confesso”. Tanto na religião quanto no Direito, aquele que confessa merece benefícios. Diante de Deus, tem a possibilidade de expiar seu “pecado” por meio de penitências mais leves. Diante dos tribunais, tem direito a uma circunstância atenuante da pena. Isto mesmo: quem confessa merece pena menor (art. 65, inciso III, letra ‘d’, do CP). Faço esta observação porque a imprensa sempre dá à expressão “réu confesso” uma carga negativa. Observem como os repórteres pronunciam os dois termos, lançando ira contra o acusado. É como se dissessem: “Que cara de pau! Fez e ainda confessa...”.

Fechando a digressão, vamos ao abominável caso do Sr. Pimenta Neves, sobre quem não faço juízo de valor algum. Se é culpado ou inocente, não discuto aqui. Isto cabe ao Ministério Público de São Paulo e ao Judiciário. Colho o caso apenas para refletir com os meus …eerr.. 3,2 milhões de leitores sobre nosso sistema recursal, que, aliás, assegura a este réu e a qualquer outro a presunção de inocência até o apito final do juiz, aos 15 minutos do segundo tempo da prorrogação da segunda partida do returno.

Eis os fatos que estiveram nos jornais e que agora foram engolidos por um emaranhado recursal em Brasília. É mais uma triste história de crime passional. Sandra Gomide, ex-namorada de Pimenta Neves, foi morta a tiros em 20/ago/2000, aos 33 anos. Quem pensa que ama, mata. O Ministério Público alegou que o réu cometeu o crime por motivo torpe e mediante recurso que impossibilitou a defesa da vítima (art. 121, §2º, incisos I e IV, do CP). Levado a júri popular na comarca de Ibiúna/SP, Pimenta Neves confessou o delito e foi condenado a 19 anos, 2 meses e 12 dias de reclusão em regime fechado. Estávamos em maio de 2006. A pena foi fixada em patamar inferior a 20 anos, o que impediu o protesto por novo júri, “recurso” ainda vigente à época do julgamento e extinto com a minirreforma processual de 2008.

Na apelação criminal interposta pela Defesa, o Tribunal de Justiça de São Paulo reduziu a pena do réu para 18 anos de reclusão. A sanção para o homicídio qualificado tem intervalo de 12 a 30 anos. O caso podia ter terminado ali.

Não satisfeito com a decisão no duplo grau de jurisdição, o acusado ingressou com recurso especial endereçado ao Superior Tribunal de Justiça. Aí é que começou o caracol processual, a centopeia recursal, a miriápode judiciária, o bicho de mil perninhas da Justiça brasileira.

Um "AEADRE", cujo nomen juris é "embargos de declaração no agravo regimental nos embargos de divergência no recurso especial"

O recurso especial tomou o n. RESP 1.012.187/SP e foi distribuído à 6ª Turma do STJ, tendo como relatora a ministra Maria Thereza de Assis Moura. Em 2/set/2008, a 6ª Turma julgou parcialmente procedente o RESP para reduzir a pena de Pimenta Neves para 15 anos de reclusão. Viram como funciona? Quanto mais o recurso sobe, mais a pena desce.

Aproveitando o embolado sistema recursal brasileiro, a Defesa de Pimenta Neves entrou sucessivamente com os seguintes recursos, todos capazes de protelar o início do cumprimento da pena até as calendas gregas:

a) embargos de declaração no recurso especial, que foram improvidos em 11/dez/2008 pela própria 6ª Turma;

b) embargos de divergência no recurso especial, negados em 4/mar/2009, tendo como relator o ministro Arnaldo Esteves de Lima, da 3ª Seção do STJ;

c) agravo regimental nos embargos de divergência no recurso especial, que foi denegado em 12/ago/2009, também pela 3ª Seção;

d) embargos de declaração no agravo regimental nos embargos de divergência no recurso especial (AEADRE), que não foi provido pela 3ª Seção do STJ em 23/set/2009. Olha ele aqui.

e) recurso extraordinário nos embargos de declaração no agravo regimental nos embargos de divergência no recurso especial, que, em 5/fev/2010, não foi admitido pelo ministro Ari Pargendler, então na vice-presidência do STJ.

Não canse, pois o acusado Pimenta Neves ainda interpôs um agravo de instrumento (AI) no referido recurso extraordinário (RE), endereçado ao Supremo Tribunal Federal, para obter decisão que permita a subida do RE.

Processo penal: não se sabe onde é o fim

Este último recurso, o AI 795.677, foi autuado no STF em 12/abr/2010 e distribuído ao seu relator, o ministro Celso de Mello. A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pelo não provimento do agravo em 5/mai/2010. Desde 27/ago/2010,  o recurso está pronto para decisão (aqui).

Pensa que acabou? Não! Se o STF entender que esse agravo de instrumento é procedente, julgará o recurso extraordinário de Pimenta Neves e tudo poderá voltar à estaca zero, com novo júri lá em Ibiúna. Se isso acontecer, a Defesa poderá entrar novamente com todos esses pedidos. E outros dez anos passarão…

Esse processo penal brasileiro é enrolado como um ingongo!

6 comentários

  1. “Calendas gregas”? Caramba! Vi essa expressão num dicionário de latim uma vez (“ad calendas Graecas”), mas nunca imaginei que a veria na vida! O senhor é erudito, hem?
    Quer dizer, pensando bem, não sei — talvez a expressão seja bem conhecida e eu que era burro de não saber.
    Ah, sei lá.

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  2. ingongo rsrsrsrsrsrs essa foi ótima, seria mais cômica se não fosse a pura realidade do sistema de processo penal brasileiro.

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  3. Não é de se espantar… Se assim não fosse, não haveria tantas saídas aos criminosos do colarinho branco. O cômico é que a tangente deles serviu também a pessoas comuns. Vergonha.

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    • Jussiara, cômico seria se não servisse para as outras pessoas ” comuns” como você diz!Aliás, como não serve se a pessoa não tiver um bom advogado ou um bom defensor público!Talvez até precisemos reduzir os recursos, mas também não poderemos reduzí-los a zero!

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      • Certo, João. Veja este caso: um acórdão em embargos de declaração nos embargos de divergência nos embargos de declaração no agravo regimental no agravo de instrumento (n. 567.171-4/SE). Nele, o min. Celso de Mello, o decano do STF, reconheceu o abuso do direito de recorrer.

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