Chutada para escanteio


Autor: Luciano Ratto

Eliza Samudio é uma Geni insepulta. Provavelmente está morta. Mas continua apanhando! Agora a discussão é se caberia ou não a aplicação da Lei Maria da Penha em seu favor.

Respondo: cabia sim!

Não importa se a moça paranaense era uma “maria chuteira”, uma “garota de programa”, uma “dadeira” ou, como se diz aqui na Bahia, uma “piriguete”. Eliza foi vítima de violência de gênero, exatamente a prática que a Lei Maria da Penha (LMP) visa a coibir.

O art. 5º, inciso III, da Lei 11.340/06, determina que “Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.”

Para aplicar esse dispositivo, é preciso ter em mira o art. 4º da LMP, segundo o qual “Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina […]”. Sua finalidade precípua é justamente a proteção das mulheres vítimas da violência de gênero, intrafamiliar ou não. E, por se tratar de estatuto voltado à tutela de direitos fundamentais de pessoas vulneráveis, deve prevalecer na sua execução a regra da máxima efetividade.

Assim, evidentemente, não é necessário que haja ou tenha havido qualquer espécie de coabitação entre o agressor e a vítima. Basta que tenha havido violência de gênero decorrente de uma relação íntima de afeto, em prejuízo de uma pessoa juridicamente vulnerável. No caso concreto, a situação de vulnerabilidade parece ainda mais evidente na medida em que a vítima estava gestante quando levou o fato ao conhecimento das autoridades fluminenses.

Se o legislador não exige a coabitação para a aplicação da LMP (“independentemente de coabitação“), não se pode entender a expressão “conviva ou tenha convivido” como indicativo de que a mesma lei exigiria que os envolvidos mantivessem uma relação prévia sob o mesmo teto. Seria contraditório. Portanto, a ideia de convivência no art. 5º, III, da LMP se refere a qualquer relação afetiva entre o agressor e a vítima.

Os profissionais do Direito, especialmente juízes, membros do Ministério Público e delegados de Polícia, não podem esquecer que a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de Belém do Pará”, OEA, 1994) foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por força do Decreto n. 1973/96 e tem, no mínimo, valor de lei federal ordinária. Sendo um  tratado de direitos humanos, essa Convenção Interamericana pode ser considerada um diploma supralegal, com status semelhante ao que o STF concedeu ao Pacto de São José da Costa Rica.

Conforme o art. 2º da Convenção de Belém do Pará, “Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual“.

Esta regra muito clara dá o exato alcance do art. 5º, inciso III, da Lei Maria da Penha: qualquer relação interpessoal em que se verifique violência de gênero dá ensejo à aplicação de medidas protetivas à mulher vítima.

Também não dá para esquecer que a Convenção de Belém do Pará e toda a legislação protetiva dela decorrente, especialmente a Lei Maria da Penha, têm como premissa a prevenção da violência de gênero. Isto fica bem claro no art. 7º, alínea ‘b’, do tratado:

“Os Estados Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher“.

Minha opinião: o Estado brasileiro violou os direitos de Eliza Samudio. Essa moça foi chutada para escanteio. Agora não dá para chorar sobre o leite sangue derramado…

16 comentários

  1. Grande Professor Vladimir, primeiro quero parabenizá-lo pelo blog. Em seguida, um breve comentário sobre o texto: “Chutada para escanteio”, esclarecedor e conciso, concordo com a linha do seu pensamento, este caso específico de Eliza Samudio que ganhou repercussão nacional, infelizmente ainda se discute a aplicação da LMP. . . ! Quiçá tantos outros casos de violência contra a mulher que acontecem por esse Brasil a dentro, os quais não tiveram tanta relevância, ou seja, por não serem pessoas públicas como o ex-Goleiro Bruno, basta verificar as estatísticas das Delegacias Especializadas de Proteção à Mulher logo veremos quantos Inquéritos Policiais são relatados mensalmente ou anualmente e enviados ao Judiciário e ao MP, ou seja, o procedimento investigatório prévio realizado pelas Polícias Judiciárias, Federal e Civil, se apresentam ainda ineficazes na busca de provas iniciais da autoria e da materialidade. Desta forma a persecussão penal já é iniciada com falhas e sem subsídios para os outros órgãos que integram o sistema criminal determinar a autoria do delito e a condenação do réu. Concorda?

    Ruy Carvalho Filho seu ex-aluno da UEFS
    Policial Civil

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  2. eu a-do-rei esse texto! tirou alguma das minhas dúvidas e concordei com seu pensamento. A Eliza várias vezes é tratada como vilã e não como vítima. ” Dani, mas ela procurou!” é que eu mais ouço!!! vou sempre dar olhada nas suas atualizações. abraço

    danielle ( @danielleblima)

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  3. A lei Maria da Penha, com toda certeza, poderia ser um efetivo instrumento para impedir esse final trágico, pois possui muitos dispositivos de prevenção/repressão/proteção no combate à violência contra a mulher!Uma condenação por homicídio com pena elevada, prisão perpétua, cadeira elétrica e tudo isso que “os Varelas e Datenas” querem e profetizam, são medidas inócuas, porquanto não trarão a moça de volta nem muitos menos aliviaria a dor de quem quer que gostasse dela. Pensar o contrário, na minha opinião, é pura ilusão e costume de uma sociedade na qual ainda impera o Direito Penal do Inimigo!Muitos comentários expostos pela mídia trazem expressões como ” monstro, vagabundo, e tudo quanto é tipo de etiqueta que em nada contribuem para a justiça!Não estou aqui defendendo Bruno, ele deve ser julgado e condenado normalmente, como qualquer outro SER HUMANO que cometesse os crimes nos quais está sendo imputado , porém fico preocupado com os excessos!Inquieto, na verdade.

    Parabéns, professor, por realmente trazer uma discussão importante sobre o caso Bruno!

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  4. Dr. Aras, é muito bom poder ler algo racional e ao mesmo tempo sensível diante de tantas “tecnicalidades” que muitos se arvoram sobre o assunto. A Lei Maria da Penha foi vergastada junto com a moça. Maria da Penha sofreu um pouco mais junto com a “Geni” do futebol. Torturaram-na até a morte, um pouco porque uma juíza e mulher ou mulher e juíza interpretou de maneira estreita a lei que veio para proteger a mulher que precisa de apoio e ajuda.
    Até quando as Eloás, Mércias, Elisas, etc, serão barbaramente mortas? Quando nossos operadores do direito, pagos com nossos impostos, constitucionalizarão todas as leis e suas decisões?

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  5. Vlad. Que nem diriam os meninos do tempo da facul “tu é o cara” (risos). Você consegue expor o tema de uma maneira clara, sucinta e inteligente.

    Adoro passar por aqui. Tua escrita sempre satisfaz.

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  6. Vlad,

    Não custa repetir, seu texto, como referiu Klycia, está de parabéns.

    O que resta, agora, e pugnar pela responsabilização do Estado Brasileiro e das autoridades omissas.

    Revendo uma obra de Tzvetan Todorov (A Conquista da América: A questão do outro. trad. Beatriz Perrone Moisés, 4ª ed. São Paulo: editora WMF, Martins Fontes, 2010), é possível uma ilação com a epígrafe, ao menos em tese:

    “O capitão Alonso Lopez de Ávila tinha-se apossado, durante a guerra, de uma jovem índia, uma mulher bela e graciosa. Ela havia prometido ao marido, que temia ser morto na guerra, não pertencer a nenhum outro, e assim nenhuma persuasão pôde impedi-la de preferir perder a vida a deixar-se seduzir por outro homem; por isso ela foi atirada aos cães.
    Diego de Landa
    Relación de las cosas de Yucatán, 32

    Dedico este livro à memória de uma mulher maia devorada pelos cães ”

    De fato, o caso desta jovem deve ser levada as cortes internacionais de justiça para que sejam os culpados, comissivos por omissão e/ou simplesmente comissivos e lenientes, sejam responsabilizados.

    Nas inesquecíveis Reminiscências (DE MORAES, Evaristo. Reminiscências de um rábula criminalista. Rio de Janeiro-Belo Horizonte: editora Briguiet, 1989, p. 20, e também p. 83/88. ) cala fundo a defesa de Evaristo em prol das Prostitutas requerendo tratamento igualitário a todos que estejam sob o mesmo sol ( a lei [neste caso, Maria da Penha, sem valorações do caráter da moça, que não está em jugo]):

    “Ainda no mesmo sentido, dizia há pouco o respeitável Dr. Rui Barbosa (à imprensa, 24 de dezembro de 1900): ‘Esta folha resume a sua doutrina, a todos os respeitos, em três palavras: Omnia sub lege. Tudo e todos sob a lei. Ao Rei diríamos: Rex sub lege. Ao povo: Populus sub lege. À Justiça: Judex sub lege. Diremos pois, ao Sr. Chefe de Polícia: Sub lege Eneas. A lei é como a tenda azulada do firmamento, com o mesmo rosto e a mesma luz para os grandes e os pequenos, os bons e os maus. Nós, a polícia, os ministros e os presidentes da República não temos direito à maior legalidade que a última das pecadoras. Dentro em cada uma delas através do seu vilipêndio, há um coração, uma alma, um destino eterno, um resquício da imagem divina, e, sob a sua profanação, uma imensa miséria, um infortúnio imenso. E sempre, ainda no ínfimo grau da escala humana, o sofrimento, a desgraça impuseram aos homens de bem respeito, brandura, piedade”

    A tenda azul do firmamento, neste caso, eclipsou-se.

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    • Muito bom seu comentário, Thiago. Enriquecedor. Lembrei-me de uma regra do direito antigo. Está no Código de Manu: “Se uma mulher, orgulhosa de sua família e de suas qualidades, é infiel a seu esposo, que o rei a faça devorar por cães em lugar bastante frequentado”. Uma terrível ostentação de um suplício, como diria Foucault.

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  7. Doutor,

    Infelizmente, no país em que vivemos, pessoas com muito dinheiro ou notoriedade, ou os dois, são pouco importunadas por alguns setores da Justiça menos comprometidos com a defesa das normas legais vigentes, como parece ter sido o caso. Não tivesse sido morta, Eliza Samúdio estaria sendo violentada física e moralmente até hoje.
    E digo mais: a opinião pública, com seu falso moralismo tenderia a ficar do lado do goleiro Bruno, dando razão ao mesmo já que o “pai de família” estaria apenas evitando problemas que colocassem em risco o seu “sagrado” casamento. Creio que tal mentalidade tenha inspirado o pouco esforço dos agentes do Estado em levar o caso adiante, após as denúncias.
    Mas como expressou no post acima, anterior a qualquer outro fato, havia a dignidade e integridade da moça em jogo. Se não concordava com as atitudes dela, levasse o caso até a Justiça, fizesse investigação de paternidade e, caso confirmada, pagasse pensão. Não seria o primeiro e com certeza também o último.
    Se a questão o afligia, evitasse mais contatos. Não era para acabar o tormento, como o mesmo disse? Encarregasse seus advogados de resolvê-lo. Pessoas inteligentes e equilibradas agem assim. Mas não o goleiro [….] …

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