Sobre a capacidade de negociar e propor acordos de colaboração premiada em juízo


Como noutros países em que existe a colaboração premiada negocial, a pactuação ocorre entre as partes, por iniciativa da acusação ou da defesa. No Brasil, de forma esdrúxula, a Lei 12.850/2013 pretendeu conceder também à Polícia a atribuição de formalizar acordos de colaboração premiada.

Acertadamente, o artigo 4º, §6º, da Lei diz que o juiz não participa das negociações “entre as parte” para a formalização do acordo de colaboração, já que é o garantidor dos direitos fundamentais do suspeito ou do acusado, devendo agir como terceiro imparcial. Porém, mais adiante, ferindo a Constituição, a lei permite que tal acordo ocorra “entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público”, o que é um contrassenso, já que delegados não integram a relação jurídica processual; e não serão partes de eventual ação penal.

No §2º do artigo 4º da Lei a inconstitucionalidade é ainda mais gritante, pois quis conferir ao delegado a possibilidade de representar (tal como pode o Ministério Público requerer) a concessão de perdão judicial[1] ao colaborador! O perdão judicial é causa extintiva da punibilidade que só pode ser reconhecida pelo juiz após a propositura da ação penal, na fase da absolvição sumária ou por ocasião da sentença de mérito, o que naturalmente faz ver a estranheza de admitir-se a intervenção de uma não-parte no processo penal, em potencial dissonância com o autor da ação penal (dominus litis).

Evidentemente, estes trechos dos referidos parágrafos do artigo 4º da Lei 12.850/2013 são inconstitucionais[1], por ofensa direta ao princípio acusatório, ao contraditório e ao artigo 129, inciso I, da CF, pois é o Ministério Público que detém a titularidade privativa para a propositura de ações penais, não podendo a Polícia negociar a persecução criminal contra o interesse jurídico ou a estratégia processual do titular da ação penal.

Isto não quer dizer, porém, que a Polícia não possa tomar a iniciativa de propor a um suspeito que colabore ou estabelecer tratativas iniciais com este ou com seu defensor, mediante posterior provocação ao Ministério Público, para controle desse pré-acordo, no marco do artigo 129, inciso VII, da CF[3], e para a conclusão da negociação processual com a contraparte. Naturalmente, a Polícia não deve permanecer inerte quando surja a possibilidade de ampliar o escopo probatório, mas claramente não pode, sem aval, dispor do direito de ação do Ministério Público ou do conteúdo de relação processual da qual não participa, já que seu múnus se encerra com a conclusão da investigação criminal.

Interpretação conforme deve levar a entender – aí então de forma correta – que a proposta da autoridade policial deve ser previamente submetida ao Ministério Público, que a veiculará em juízo, após ratifica-la à defesa do potencial colaborador. Ainda que a formalização de um acordo possa ser incentivada pela Polícia, a negociação da resposta penal e dos benefícios legais correspondentes e a execução do acordo em juízo têm cunho claramente processual (e não pré-processual), sendo assunto inter partes e, portanto, matéria estranha à atividade policial.

[Em abril de 2016, a Procuradoria-Geral da República propôs a ADI 5508 ao SupremoTribunal Federal para obter interpretação conforme ao art. 4º, parágrafos 2ºe 6º, da Lei 12.850/2013]


[1] Se o juiz discordar da proposta de perdão judicial, deve aplicar o artigo 28 do CPP, cabendo ao Procurador-Geral (ou à Câmara Criminal revisora) a última palavra sobre a subsistência ou não da proposta de reconhecimento dessa causa extintiva de punibilidade. Tal regra mostra que, apesar da estranha faculdade conferida à Polícia, a manifestação que deve prevalecer em juízo é a do Ministério Público.

[2] Quando se compara esses dois parágrafos com o caput do artigo 4º percebe-se prontamente que são enxertos incompatíveis com a genética do instituto. De fato, tanto para a redução de pena, ou para sua substituição, quanto para a concessão de perdão judicial, o artigo 4º, caput, da Lei tem como premissa o “requerimento das partes”, ou seja, Ministério Público e defesa. Já no artigo 7º, §2º, da Lei nota-se que o legislador diferenciou claramente “partes” (MP e defesa) da figura do delegado de Polícia.

[3] Cabe ao Ministério Público exercer o controle externo da atividade policial, no que se insere a atribuição de aprovar diligências – ou aqui, propostas – que tenham impacto na persecução criminal.

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